Sou obrigada a ter empatia?
Gostemos ou não, há 19 anos durante três meses, acabamos sendo sequestrados pelo Big Brother Brasil, o reality show que coloca estranhos dentro de uma casa, traça um roteiro e coloca praticamente todos que estão do lado de cá na tela em diversos papeis. Assistindo ou não aos episódios, pagando ou não a assinatura do pay per view, o nome dos participantes, as confusões nas festas, os excessos, as provas de resistência acabam por orbitar a nossa realidade, seja nas rodas de conversas com os amigos ou nas notícias e memes que surgem em todos os lugares.
Mas esse ano, na edição número 21 do programa, o BBB parece que furou a bolha da sua influência de uma maneira ainda mais pungente, e infelizmente isso não se deu por motivos agradáveis. Na primeira edição na qual a produção pareceu se preocupar em garantir a inclusão dentro do seu elenco, trazendo pessoas pretas, pessoas LGBTQIA+ e querendo promover discussões tão em voga especialmente aqui nas redes como a chamada cultura do cancelamento ou o protagonismo feminino, o roteiro acabou sendo reescrito.
Acredito que antes de conversarmos sobre pontos centrais do programa, talvez tenhamos que repensar se a diversidade demonstrada no elenco do programa, e em propagadas, anúncios e novela, até que ponto representa algo genuíno e transformador, ou algo apenas feito “para cumprir tabela”. Em um texto publicado em abril do ano passado, no portal Prop Mark, Camila Campos, especialista em Marketing e Propaganda, fala um pouco sobre isso, usando como viés a questão do racismo estrutural da nossa sociedade:
Chamamos de “Diversidade” um movimento que surgiu exclusivamente para corrigir uma falha gravíssima da comunicação brasileira: não representar a maioria (56%) da sua população. Mas, ao invés de nomear esse movimento fazendo referência direta aos negros, nomeamos essa “boa ação” de modo a embranquecer seu significado –já que sabemos que diversidade não abrange só os negros. Diversidade abrange negros, mulheres, pessoas com deficiência, indígenas, gays, ruivos, o que você quiser. Diversidade reforça a exclusão, uma vez que retira o protagonismo do negro, colocando-o como mero coadjuvante.
E nós podemos ampliar esse conceito a qualquer grupo minoritário que esteja presente em qualquer cenário. Então talvez o questionamento comece por aqui, seria apenas uma jogada para agradar ao público que assiste ao programa e se manifesta especialmente nas redes sociais, ou uma preocupação genuína com a inclusão?
Mas vamos às conversas que fala diretamente sobre aqueles que estão na casa e as questões que podemos trazer à luz.
Começando por uma das participantes mais polêmicas da casa: Lumena Aleluia. Psicóloga, originaria de Salvador Bahia, também é pesquisadora e DJ. Lésbica, apresentava antes de entrar no programa um histórico de participação nas lutas por direitos igualitários, especialmente de mulheres pretas. O seu perfil foi um dos mais celebrados quando apareceu na lista de participantes da edição 21 do reality show, justamente por carregar uma expectativa de que a sua chegada a TV, trouxesse a representatividade por aquelas que se identificavam com as bandeiras levantadas pela baiana. Já no terceiro dia de programa, Lumena acabou se destacando ao provocar uma discussão sobre transfobia, após os participantes do sexo masculino terem se maquiado depois de uma ação de marketing de um dos patrocinadores da atração. Lumena se incomodou com as imitações de trejeitos femininos caricatos usado por muitos e se posicionou que aquele era um comportamento que poderia ofender as pessoas trans. A discussão rendeu dentro e fora da casa, mas talvez tenha sido um dos únicos momentos no qual ela acabou por conseguir algum apoio por parte da audiência.
Lumena se destaca principalmente por usar um linguajar que por vezes soa inteligível para muitos, abusando de termos rebuscados e fortes para falar de tantas discussões sobre o dia-a-dia, quando, por exemplo disse a participante Juliette que ela precisava ressignificar a informação apenas para dizer que a outra não estava sendo verdadeiro ou dizer que houve uma desligitimização da shippada do casal formado por Bil — um homem branco — e Karol Conká — uma mulher preta — por parte dos participantes brancos da casa. Fenotipicamente branca foi outra frase que até o momento marcou a sua presença, quando ela usou isso para se referir à Carla Diaz.
Lucas Penteado, ator, 24 anos, logo nas primeiras festas dentro da casa acabou abusando da bebida e cometeu falhas com os outros que estavam com ele na casa. Acabou desagradando a todos, e esse foi o estopim para um dos comportamentos mais desagradáveis que podemos notar. Lucas, também um garoto preto, parte dos movimentos sociais da cidade de São Paulo, tendo participado inclusive das invasões das escolas feita por estudantes que reivindicavam melhores condições no estado, passou a ser vítima de tortura psicológica. Ao passo que procurava legitimar a sua posição com Lumena, não alcançou o que muitas esperavam que seria a empatia, teve a sua religiosidade usada como ferramenta de ofensas. Mas Lumena não foi a protagonista desse capítulo, aqui entra outra figura central: a cantora Karol Conká.
Karol, cantora e apresentadora, nascida em Curitiba, 34 anos. Suas letras e a sua imagem pública desde o princípio apontam para o empoderamento feminino e colocar a mulher no protagonismo da sua vida, pessoa preta e que se declara bissexual. A participação que surpreendeu há tantos, primeiro pela novidade, acabou reforçando isso pela pior maneira possível. Karol começou a se mostrar uma pessoa extremamente abusiva dentro das paredes da casa mais vigiada do Brasil. A cantora passou a praticar verdadeira tortura psicológica com Lucas, proibindo o de sentar-se à mesa para almoçar, acusando a todos os momentos de ser uma pessoa extremamente agressiva, insinuando que ele pudesse praticar atos violentos — inclusive de abuso sexual — dentro e fora da casa. Lucas passou a se sentir cada vez pior na casa ao ver pessoas com as quais se identifica, não apenas às duas participantes, mas também o comediante Nego Di e o rapper Projota, visto inclusive como um ídolo por Lucas. O abuso era constante, mas a gota d’água para ele, veio em um assunto que também pode ser tratado como algo muito delicado.
Na festa da noite do dia 06 de fevereiro, Lucas com o economista Gilberto protagonizaram o primeiro beijo entre dois homens de toda a história do programa. E isso foi o suficiente para que a sua sexualidade fosse atacada. Ao contrário de Gilberto que já havia se declarado gay desde o princípio, Lucas nunca havia se aberto sobre a sua bissexualidade, e por isso foi acusado de ficar com o companheiro de confinamento para ganhar destaque no jogo e formar casal, uma velha estratégia desse tipo de programa. Preocupado por assumir a bissexualidade em rede nacional, com o que a família iria pensar, a sua comunidade, pediu um conselho a Lumena — e obteve como resposta “Você não é especial”. Outros integrantes da casa questionaram Lucas da mesma maneira. Afetados pela nossa visão de sexualidade e gêneros apenas dual, com imagens fortemente ligados ao feminino e ao masculino, as pessoas com orientação afetiva e / ou sexual que fluem entre os dois campos acabam carregando uma série ainda maior de preconceitos, estereótipos e conceitos equivocados. Indivíduos bissexuais são vistos como promíscuos, não confiáveis, indecisos, dentre tantos estigmas e julgamentos. Um estudo realizado nos Estados Unidos pela BiNetUSA, Bisexual Resource Center e Movement Advancement Project (MAP) revelou que pessoas bissexuais têm até seis vezes mais chances de esconder sua orientação sexual em relação a gays e lésbicas. De acordo com o levantamento, apenas 28% das e dos bissexuais afirmaram que as pessoas mais próximas sabiam sobre sua orientação sexual. Em comparação com 77% para homens gays e 71% para lésbicas.
A “outra parte envolvida” no polêmico beijo, também já foi alvo da pauta do colorismo dentro do programa, ao não ser considerado como uma pessoa preta no programa. Nego Di e Lumena, em uma conversa durante a madrugada dispararam: “Ele pode ter alguém, um vô, uma vó [negros]. O racismo só sofre quem é da nossa cor, o policial não te para porque tua mãe é negra. Ele é um pouquinho sujinho. Se esfregar bem…”.
Poderia citar mais alguns outros exemplos, como a xenofobia sofrida pela paraibana Juliette, ou sobre o assédio pelo qual Bill passou em uma das festas, e também a falta da sororidade entre algumas mulheres, mas isso acabaria por deixar o artigo muito mais extenso, o ponto central que fica é o seguinte: como lidar quando não encontramos o acolhimento dentro daqueles aos quais nos consideramos iguais.
Sabemos que uma pessoa não chega a determinado local ou ponto da sua vida, sem ter sido influenciada por toda a sua jornada até ali. Simplificando bastante o pensamento do filósofo John Locke, todo ser humano seria desde o início da sua vida uma tábula rasa, ou seja, uma folha em branco que vai adquirindo todo o seu conhecimento durante toda a sua vida. E isso não seria diferente dentre os participantes do programa. E isso apoia a questão central: somos indivíduos antes de sermos coletivo, e isso pode ser usado para o bem, ou para o mal. Não podemos obrigar ao próximo que enxergue as nossas mazelas e desavenças com o nosso olhar, ou com as nossas dores. Não podemos e não temos como colocar uma espécie de “empatia coletiva” para todos os casos. Essa “coletividade compulsória”, acaba por ser danosa em alguns pontos, como está sendo na casa do BBB, onde os participantes citam pautas coletivas para se isentar de erros e criar figuras de autoridade que salvaguardam as suas personas criadas não apenas para os meses de confinamento, mas também para além daqueles muros. E a reflexão que fica é essa, como nos posicionar em situações como essas? Como entender que a diversidade não é única, e tantos outros pontos.